sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Da racionalidade onisciente à racionalidade oportunista

A abordagem psicológica do comportamento humano nas organizações abortou devido aos impasses das explicações anteriores. O estudo empírico da tomada de decisão nas e pelas organizações, ao possibilitar a substituição do modelo clássico da racionalidade onisciente pelo modelo empírico da racionalidade limitada ou relativa, vieram exigir a inversão do modo de raciocínio empregado e renovaram por completo nossa visão do funcionamento das organizações.
            Essa verdadeira desconstrução de todas as premissas do modelo clássico da racionalidade, umas após outras, é o resultado dos trabalhos de um grande número de autores que para isso contribuíram. É, contudo, a Herbert Simon e ao grupo que ele animou no Carnegie Institute of Technology que cabe o mérito de ter fixado as bases decisivas para renovar por completo nosso raciocínio sobre a racionalidade, ao propor o conceito de racionalidade limitada.
            O ponto de partida de Simon é duplo:
            Por um lado, o sentimento de que a teoria das organizações só tem utilidade e justificação caso se admita que a racionalidade humana está sujeita a limitações e que essas limitações estão elas próprias dependentes do contexto organizacional em que se situa um determinado responsável por decisões.
            Por outro lado, uma profunda insatisfação com o que considerava ser a tendência irracionalista das ciências do comportamento de então. Em sua opinião elas satisfaziam-se com demasiada facilidade com a demonstração de que os comportamentos humanos não correspondem de modo algum às hipóteses de racionalidade perfeita, em lugar de procurarem saber por que esses comportamentos aparentemente irracionais talvez não o sejam.
            Daí sua convicção de que uma teoria da ação administrativa deve ser construída sobre uma teoria da escolha racional, já que o comportamento humano nas organizações, mais do que em qualquer outro lugar, deve ser considerado como "desejado de forma racional".
            O modelo da racionalidade onisciente (Simon fala, a propósito, de racionalidade objetiva) repousa sobre três premissas essenciais. Neste modelo, considera-se que o decisor:
            - Detém todas as informações e uma capacidade ilimitada para seu tratamento;
            - Procura a solução ótima entre todas as opções possíveis;
            - Tem uma idéia clara quanto às suas preferências, que são consideradas consolidadas     de uma vez por todas, estáveis, coerentes e hierarquizadas.
            São as duas primeiras premissas que constituem o alvo das críticas e das propostas de Simon. Em uma série de publicações ele argumenta que toda e qualquer opção é sempre feita sob pressão e que a racionalidade humana é limitada por duas grandes coações de certo modo irredutíveis.
            Por um lado, a informação de um decisor é sempre incompleta porque o conhecimento das conseqüências das diferentes possibilidades de ação e do seu valor no futuro é sempre fragmentário e, devido a razões de toda ordem (falta de tempo, falta de imaginação, falta de atenção), apenas um pequeno número das soluções possíveis é realmente ponderado.
            Por outro lado, nenhum decisor está apto a otimizar suas soluções, uma vez que a complexidade dos processos mentais que uma verdadeira otimização implica supera, e muito, as capacidades de tratamento da informação e de raciocínio do ser humano. Em lugar do raciocínio sinóptico (reduzido) postulado pelo modelo de racionalidade onisciente, o decisor põe em prática um raciocínio seqüencial no qual, a partir de uma idéia mais ou menos precisa do que seria uma solução aceitável, examina uma a uma as opções que se lhe oferecem e dirige sua escolha à primeira que corresponde essa idéia. Segundo as palavras de Simon, não otimiza, contenta-se com uma solução satisfatória.
            A noção de racionalidade limitada significa uma completa renovação do modo de raciocínio empregado. Em vez de criticar o decisor por não se comportar segundo os padrões do modelo clássico e de procurar induzi-lo a conformar-se mais com esse modelo, deve-se estudar e compreender o comportamento do decisor a partir de uma investigação e de uma reflexão em duas direções:
            A primeira tem a ver com as condições contextuais ou, se quisermos, organizacionais e sociais da tomada de decisão, isto é, com a estruturação do campo de ação, de que as características, as regras, os equilíbrios de poder e os sistemas de alianças condicionam a percepção e, por conseguinte, a racionalidade dos decisores.
            A forma como concentram a atenção e os esforços nos diferentes problemas limita todos os seus conhecimentos e possibilidades de busca de soluções, ou possibilidades de ação ou, em termos mais gerais, provoca ou impede os contatos entre os problemas, as soluções e as situações de decisão.
            A segunda refere-se aos critérios de decisão, ou se quisermos, das preferências que os decisores utilizam, consciente ou inconscientemente, para escolherem entre as opções que se lhes oferecerem. Situadas fora da formulação inicial de Simon, essas preferências e as condições e processos de sua emergência, de seu desenvolvimento e de sua mudança têm estado no centro de uma série de reflexões que aos poucos foram esvaziando de conteúdo a terceira premissa do modelo clássico.
            Retomando, aprofundando e estendendo as conclusões de Festinger sobre a dissonância cognitiva, esses trabalhos mostram que as preferências de um decisor num determinado momento não são precisas, coerentes e unívocas, mas, ao contrário, múltiplas, fluidas, ambíguas e contraditórias, que não precedem necessariamente a ação e que podem também ser-lhe posteriores, que não são estáveis e independentes das condições de escolha, mas, ao contrário, adaptativa e sujeitas a modificações endógenas (interiores), isto é, produzidas pela própria situação de escolha, e que não são intangíveis, mas, ao contrário, estão submetidas a manipulações voluntárias ou involuntárias conscientes ou inconscientes por parte dos decisores.
            Daí resulta a necessidade de afrouxar os laços entre o comportamento de um indivíduo e suas preferências, representações e propósitos. Os dois não estão ligados nem de forma estreita ou cerrada (podem coexistir gamas de comportamento relativamente variadas com um mesmo conjunto de preferências) nem de forma unívoca (as preferências num momento podem induzir a opções do mesmo modo que as opções podem induzir preferências). Em outros termos, deve-se não só aceitar uma visão menos intencional e linear da ação humana, mas também reformular as concepções normativas da decisão nessa conformidade.
            Convém sublinhar o alcance heurístico do que podemos designar por uma verdadeira desconstrução da noção de preferência. Estendendo e completando a noção simoniana de racionalidade limitada que, na verdade, implicitamente a invocava, chama a atenção para a natureza essencialmente contingente e oportunista do comportamento humano. Sendo sempre o produto simultâneo de um efeito de disposição e de um efeito de posição, não pode ser pensado isoladamente das pressões e das oportunidades que os contextos de ação fornecem aos indivíduos. Desse modo, permite que nos libertemos do que D. Wrong designou como uma concepção hipersocializada do homem, que procura no passado dos indivíduos e em suas experiências marcantes de socialização a explicação dos seus comportamentos presentes. Aqui, as características do contexto de ação presente tornam-se tão importantes quanto o passado para compreender os comportamentos, e os indivíduos recuperam um mínimo de distância e de autonomia face a seus valores, normas e experiências.
            Ao mesmo tempo, ela permite relativizar o papel das intenções e do cálculo nos comportamentos humanos. Só raramente os indivíduos têm preferências ou objetivos claros. Sobretudo, nem sempre têm tempo para calcularem suas atitudes em função dessas preferências. São levados a tomar medidas necessárias para se protegerem, o que pode obrigá-los a reconsiderar as finalidades de sua atuação no meio do percurso, ou a inventar ou descobrir outras, a "racionalizarem" sua ação. É, portanto, ilusório considerar comportamento humano sempre refletido, isto é, mediatizado através de um cálculo a partir de objetivos previamente fixados.
            Basta analisar tal comportamento como ativo, ou seja, como uma escolha efetuada sob pressão dentre um conjunto de oportunidade presentes num dado contexto, ou até como uma adaptação ativa e razoável às oportunidades e pressões existentes num determinado contexto. Ao tornar passíveis de uma análise racional todos os comportamentos humanos, sem tecer juízos prévios sobre a origem, a substância ou o conteúdo de sua racionalidade, esta visão abrangente da racionalidade permite estabelecer um utilitarismo metodológico, isto é, um método de análise das organizações e da ação organizada que recorre à hipótese de uma racionalidade utilitária ou "estratégica" dos comportamentos para descobrir, através dos desvios dessa racionalidade, os elementos racionais e irracionais (afetivos, ideológicos, culturais, etc.) da estrutura do campo, ou seja, as características do jogo ou dos jogos em que os indivíduos estão envolvidos.


Até a próxima...

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